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O texto abaixo é uma versão resumida do capítulo “Sentido da Colonização”, do livro “Formação do Brasil contemporâneo” escrito por Caio Prado Junior. Para a realização de tal resumo foram utilizadas praticamente as próprias palavras de Caio Prado Junior.

Sentido da Colonização
Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo “sentido”. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo. Se forma de uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa, e dirigida sempre numa determinada orientação.
O sentido da evolução de um povo pode variar; acontecimentos estranhos a ele, transformações internas profundas do seu equilíbrio ou estrutura, ou mesmo ambas estas circunstâncias conjuntamente, poderão intervir, desviando-o para outras vias até então ignoradas. Portugal nos traz disto um exemplo frisante. No alvorecer do séc. XV, a história portuguesa muda de rumo. Integrado nas fronteiras geográficas naturais que seriam definitivamente as suas, constituído territorialmente o Reino, Portugal se vai transformar num país marítimo; desliga-se, por assim dizer, do continente e volta-se para o Oceano; não tardará em se tornar uma grande potência colonial.
O final do período de colônia não é senão um elo da mesma cadeia que nos traz desde o nosso mais remoto passado. Não sofremos nenhuma descontinuidade no correr da história da colônia. E se escolhi um momento dela, apenas a sua última página, foi tão-somente porque, aquele momento se apresenta como um termo final e a resultante de toda nossa evolução anterior. A sua síntese. Não se compreende por isso, se desprezarmos inteiramente aquela evolução, o que nela houve de fundamental e permanente. Numa palavra, o seu sentido.
Precisamos reconstituir o conjunto da nossa formação colocando-a no amplo quadro, com seus antecedentes, destes três séculos de atividade colonizadora que caracterizam a história dos países europeus a partir do séc. XV.
A colonização portuguesa na América não é um fato isolado, a aventura sem precedente e sem seguimento de uma determinada nação empreendedora; ou mesmo uma ordem de acontecimentos, paralela a outras semelhantes, mas independente delas. É apenas a parte de um todo, incompleto sem a visão deste todo. Estamos tão acostumados em nos ocupar com o fato da colonização brasileira, que a iniciativa dela, os motivos que a inspiraram e determinaram, os rumos que tomou em virtude daqueles impulsos iniciais se perdem de vista. Ela aparece como um acontecimento fatal e necessário, derivado natural e espontaneamente do simples fato do descobrimento. Esquecemos aí os antecedentes que se acumulam atrás de tais ocorrências, e o grande número de circunstâncias particulares que ditaram as normas a seguir.
A expansão marítima dos países da Europa, depois do séc. XV, se origina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores daqueles países. Deriva do desenvolvimento do comércio continental europeu, que até o séc. XIV é quase unicamente terrestre, e limitado, por via marítima, a uma mesquinha navegação costeira e de cabotagem. A grande rota comercial do mundo europeu é a que liga por terra o Mediterrâneo ao mar do Norte. No séc. XIV, mercê de uma verdadeira revolução na arte de navegar e nos meios de transporte por mar, outra rota ligará aqueles dois pólos do comércio europeu: será a marítima que contorna o continente pelo estreito de Gibraltar. O primeiro reflexo desta transformação, foi deslocar a primazia comercial dos territórios centrais do continente, para aqueles que formam a sua fachada oceânica.
A Europa deixará de viver recolhida sobre si mesma para enfrentar o Oceano. O papel de pioneiro nesta nova etapa caberá aos portugueses. Enquanto holandeses, ingleses, normandos e bretões se ocupam na via comercial recém-aberta, os portugueses vão mais longe, procurando empresas em que não encontrassem concorrentes mais antigos e já instalados. Descobrirão as Ilhas (Cabo Verde, Madeira, Açores). Lá por meados do séc XV, começa a se desenhar um plano mais amplo: atingir o Oriente contornando a África. Seria abrir uma rota que os poria em contacto direto com as opulentas Índias das preciosas especiarias.
Atrás dos portugueses lançam-se os espanhóis. Escolherão outra rota, pelo ocidente ao invés do oriente. Descobrirão a América, seguidos de perto pelos portugueses que também toparão com o novo continente. Virão, depois, dos países peninsulares, os franceses, ingleses, holandeses, até dinamarqueses e suecos. Só ficarão atrás aqueles que dominavam no antigo sistema comercial terrestre ou mediterrâneo. Mal situados, geograficamente, com relação às novas rotas, e presos a um passado que ainda pesava sobre eles, serão os retardatários da nova ordem. A Alemanha e a Itália passarão para um plano secundário.
Todos os grandes acontecimentos desta era, articulam-se num conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio europeu. Tudo que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do séc. XV.
Os portugueses traficarão na costa africana com marfim, ouro, escravos; na Índia irão buscar especiarias. Para concorrer com eles, os espanhóis, seguidos de perto pelos ingleses, franceses e demais, procurarão outro caminho para o Oriente; a América, com que toparam nesta pesquisa, não foi para eles, a princípio, senão um obstáculo oposto à realização de seus planos e que devia ser contornado. Todos os esforços se orientam então no sentido de encontrar uma passagem (brecha para o Pacífico que se esperava encontrar no continente).
Tudo isto lança muita luz sobre o espírito com que os povos da Europa abordam a América. A idéia de povoar não ocorre inicialmente a nenhum. É o comércio que os interessa, e daí o relativo desprezo por este território primitivo e vazio que é a América; e inversamente, o prestígio do Oriente, onde não faltava objeto para atividades mercantis.
Ocupar com povoamento efetivo, isto só surgiu como necessidade imposta por circunstâncias novas e imprevistas. Aliás, nenhum povo da Europa estava em condições naquele momento de suportar sangrias na sua população.

Nestas condições, “colonização” ainda era entendida como aquilo que dantes se praticava; fala-se em colonização, mas o que o termo envolve não é mais que o estabelecimento de feitorias comerciais.
Na América, a situação se apresenta de forma inteiramente diversa: um território primitivo habitado por rala população indígena incapaz de fornecer qualquer coisa de realmente aproveitável. Para os fins mercantis que se tinham em vista, a ocupação não se podia fazer como nas simples feitorias, com um reduzido pessoal incumbido apenas do negócio, sua administração e defesa armada; era preciso ampliar estas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que interessassem ao seu comércio. A idéia de povoar surge daí, e só daí.
Aqui ainda, Portugal foi um pioneiro. Era preciso povoar e organizar a produção: Portugal realizou estes objetivos brilhantemente. Em todos os problemas que se propõem desde que uma nova ordem econômica se começa a desenhar aos povos da Europa, a partir do séc. XV, os portugueses sempre aparecem como pioneiros. Elaboram todas as soluções. Espanhóis, ingleses, franceses e os demais, não fizeram outra coisa, durante muito tempo, que navegar em suas águas; mas navegaram tão bem, que acabaram suplantando os iniciadores e arrebatando-lhes a maior parte, se não praticamente todas as realizações e empresas ultramarinas.
Os problemas de novo sistema de colonização, envolvendo a ocupação de territórios quase desertos e primitivos, terão feição variada, dependendo em cada caso das circunstâncias particulares com que se apresentam. A primeira delas será a natureza dos gêneros aproveitáveis que cada um daqueles territórios proporcionará.
A América lhe poria à disposição (aos europeus), em tratos imensos, territórios que só esperavam a iniciativa e o esforço do Homem. É isto que estimulará a ocupação dos trópicos americanos. Mas trazendo este agudo interesse, o colono europeu não traria com ele a disposição de pôr-lhe a serviço, neste meio tão difícil e estranho, a energia do seu trabalho físico. Viria como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas só a contragosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele.
Para estes, o europeu só se dirige, de livre e espontânea vontade, quando pode ser um dirigente, quando dispõe de cabedais e aptidões para isto; quando conta com outra gente que trabalhe para ele.
A grande maioria dos colonos estava assim nos trópicos condenada a uma posição dependente e de baixo nível; ao trabalho em proveito de outros e unicamente para a subsistência própria de cada dia.
Até que se adotasse a mão-de-obra escrava de outras raças, indígenas do continente ou negros africanos importados, muitos colonos europeus tiveram de se sujeitar, embora a contragosto, aquela condição.
Em troca do transporte, que não podiam pagar, vendiam seus serviços por um certo lapso de tempo. Outros partiram como deportados; também menores abandonados ou vendidos pelos pais ou tutores eram levados naquelas condições para a América a fim de servirem até a maioridade. É uma escravidão temporária que será substituída inteiramente, em meados do século XVII, pela definitiva de negros importados.
Finalmente, os portugueses tinham sido os precursores nisto também: a escravidão de negros africanos; e dominavam os territórios que os forneciam. Adotaram-na por isso em sua colônia quase que de início.
Como se vê, as colônias tropicais tomaram um rumo inteiramente diverso do de suas irmãs da zona temperada. Enquanto nestas se constituirão colônias propriamente de povoamento, escoadouro para excessos demográficos da Europa que reconstituem no novo mundo uma organização e uma sociedade à semelhança do seu modelo e origem europeus; nos trópicos, pelo contrário, surgirá um tipo de sociedade inteiramente original. Conservará um acentuado caráter mercantil; será a empresa do colono branco, que reúne à natureza, pródiga em recursos aproveitáveis para a produção de gêneros de grande valor comercial, o trabalho recrutado entre raças inferiores que domina: indígenas ou negros africanos importados.
No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos.
É certo que a colonização da maior parte destes territórios tropicais, inclusive o Brasil, acabou realizando alguma coisa mais que um simples “contacto fortuito” dos europeus com o meio, na feliz expressão de Gilberto Freyre, diferentemente da colonização européia em outros lugares semelhantes. Entre nós foi-se além no sentido de constituir nos trópicos uma “sociedade com característicos nacionais e qualidades de permanência”, e não se ficou apenas nesta simples empresa de colonos brancos distantes e sobranceiros.
Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; recrutará a mão-de-obra que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira. Este início, cujo caráter se manterá dominante através de três séculos, se gravará profundamente nas feições e na vida do país. O “sentido” da evolução brasileira que é o que estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização. Tê-lo em vista é compreender o essencial deste quadro que se apresenta em princípios do século passado.

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